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Cromossomos e espécies invasoras

Rubens Pazza, 2017.

Há muito tempo atrás defendi meu mestrado. A ideia era simples. Estudar os cromossomos de uma espécie de peixes amplamente distribuídas pela região Neotropical, especialmente nas bacias hidrográficas brasileiras, a traíra (Hoplias malabaricus), em uma região do Alto rio Paraná, chamada de planície de inundação. Uma região logo à montante do lago formado pela Usina de Itaipu anos antes.

Hoje razoavelmente bem resolvida, esta espécie já foi considerada um complexo de espécies (ou espécie críptica), ou seja, um conjunto de espécies com pouca definição morfológica designada com um mesmo nome. Desde os anos 70 os estudos cromossômicos demonstraram que populações desta espécie podiam apresentar diferentes números cromossômicos. O conjunto das características cromossômicas (número e forma, basicamente) compartilhado por indivíduos ou populações pode ser considerado um citótipo. E Hoplias malabaricus apresentava pelo menos sete bem distintos citótipos. Embora alguns deles sejam encontrados em situação de simpatria (no mesmo local ou córrego/lagoa), vários citótipos são específicos de determinadas bacias hidrográficas. No momento estas diferenças entre os citótipos não vêm ao caso, mas basta saber que são tão gritantes que é muito complicado considerar ser a mesma espécie grupos com um citótipo e grupos com outro (para ter uma noção sobre conceituar espécie e sua problemática, sugiro ouvir o episódio do Rock com Ciência sobre esse tema).

No Alto rio Paraná, que compreende basicamente os rios afluentes do rio Paraná antes de Itaipu, eram encontrados dois citótipos distintos. No Baixo rio Paraná (também conhecido como rio Paraguai) existia um outro citótipo diferente dos anteriores. O que aconteceu foi que nesta planície de inundação do rio Paraná encontrei os três citótipos em simpatria. Os dois do Alto rio Paraná e mais o do Baixo rio Paraná. Qual a explicação?

Bom, a barragem da usina de Itaipu hoje divide as províncias da ictiofauna do alto e baixo rio Paraná. Mas nem sempre foi assim. Anteriormente, o divisor destas províncias eram as Sete Quedas, o conjunto de cachoeiras que foi inundado na construção de Itaipu. Embora hajam espécies em comum entre as duas bacias hidrográficas, diversas são específicas do alto ou baixo Paraná. O detalhe é que há uma certa distância entre a localização das Sete Quedas e onde a barreira fica atualmente, a barragem da usina. São 150 km de diferença. A barragem foi construída abaixo de Sete Quedas e tudo que estava entre a barragem e Sete Quedas subiu. Nesta brincadeira várias espécies de ocorrência apenas abaixo já foram relatadas no Alto Paraná. Estas espécies são invasoras, pois não são nativas desta bacia hidrográfica.

E o que houve com Hoplias malabaricus? O mesmo. Populações com o citótipo do baixo Paraná subiram e conseguiram sobreviver no novo ambiente, como acontece com algumas espécies invasoras. O problema é que esta espécie não figuraria na lista de espécies exóticas encontradas na bacia hidrográfica do Alto rio Paraná, uma vez que morfologicamente os citótipos são indistinguíveis. Eis, portanto, uma preocupação pouco documentada quando se fala em conservação da biodiversidade. O fato de que muita diversidade está escondida e não pode ser avaliada nos tradicionais métodos de levantamentos e estudos ecológicos e de conservação.

Referência:
Pazza, R., & Júlio Jr., H. (2003). Occurrence of Three Sympatric Cytotypes of Hoplias malabaricus (Pisces,Erythrinidae) in the Upper Parana River Foodplain (Brazil) CYTOLOGIA, 68 (2), 159-163 DOI: 10.1508/cytologia.68.159

Genética Ecológica – uma ferramenta para o estudo da biodiversidade

Rubens Pazza, Folha Biológica, 2010.

Embora pareça novidade, a Genética Ecológica não é uma área nova. Na realidade, suas primeiras impressões vieram dos trabalhos de Darwin e Wallace, que primeiro relacionaram a Genética (variação) com a Ecologia (luta pela sobrevivência). Em termos simples, a Genética Ecológica é uma ciência que trabalha com a análise das variações genéticas inter e intrapopulacionais, que em última instância leva à adaptação e especiação. Assim, diferentes metodologias que avaliem a variabilidade de populações, espécies ou mesmo indivíduos podem ser utilizados como ferramenta para a Genética Ecológica. Mais recentemente, com o advento da biologia molecular, novas ferramentas permitiram a observação de variação em níveis cada vez mais refinados. Não apenas os avanços técnicos, mas também os avanços teóricos foram importantes para a consolidação desta área de estudo, como a teoria de metapopulações e as análises filogenéticas, por exemplo.

Uma das área de estudo da genética ecológica envolve a resolução dos problemas taxonômicos. Mas por que motivo os problemas taxonômicos seriam problemas ecológicos? Em primeiro lugar, um naturalista deve se preocupar em saber com que espécie está lidando, pois isso é imprescindível para a avaliação dos seus resultados. Quando um pesquisador afirma que determinada espécie de peixes apresenta desova total na época chuvosa, ele precisou avaliar vários exemplares da mesma espécie em diferentes épocas do ano para chegar a esta conclusão. Toda a sua hipótese depende da correta identificação dos exemplares observados. Entretanto, existem dois grandes problemas associados à identificação de espécies. O primeiro deles é em relação ao conceito de espécie em si. O que realmente é uma espécie? O “conceito biológico” de Mayr-Dobzhansky pode ser útil para muitos organismos, mas não para todos nem para todas as situações.  Em segundo lugar, existem muitos grupos de organismos onde a identificação taxonômica ao nível de espécie é extremamente complicada do ponto de vista morfológico. Para tentar resolver o segundo caso, metodologias mais refinadas como a de marcadores genéticos (citogenética, marcadores moleculares, sequenciamento de trechos de DNA nuclear e mitocondrial), por exemplo, podem ser úteis. Mais recentemente, a utilização de um pequeno trecho do gene da citocromo oxidase I do DNA mitocondrial (COI) tem apontado para novos rumos na identificação de espécies por meios moleculares. É o chamado código de barras de DNA (DNA barcoding), que pressupõe que a variação encontrada nesta região do genoma mitocondrial é suficiente para identificar espécies distintas.

Os estudos ecológicos ganharam um importante aliado na identificação de espécies por meio de marcadores genéticos. Além das questões ecológicas clássicas, das inter-relações entre populações e espécies em um ecossitema, esta ferramenta também é bastante útil em questões mais aplicadas, como a identificação de espécies quando a morfologia está descaracterizada. Um exemplo interessante é o reconhecimento e a certificação de madeiras como pertencentes a espécies não ameaçadas, evitando ou coibindo crimes ambientais. O mesmo vale para carnes processadas, seja para evitar o uso indevido de espécies ameaçadas, ou mesmo para garantir que o atum enlatado é realmente atum, e não bonito, um peixe da mesma família e de carne semelhante, mas com menor valor de mercado ou ainda, para literalmente, não levar gato por lebre!

Esta entrada foi publicada em 23 de março de 2017, em Blog/Notícias.